terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Queda Infinita

Acabo de chegar a casa. O cão não vem receber-me à porta, não deve estar, talvez tenha ido às cadelas. Dou dois passos e entro. Fecho a porta e o barulho apaga-se. Finalmente, o silêncio dos carros da rua das recomendações zelosas de uma mãe para o filho
- Miguel não atravesses a estrada que pode vir algum carro
num tom estridente e insuportável, calo-os a todos com o trinco. Fico só, estou só, sozinho à demasiado tempo com este ruído permanente que se instalou não sei quando dentro de mim. Não tenho descanso não consigo descontrair. Sinto que estou à beira, ou melhor, em queda e este som é o meu corpo a rasgar o ar em direcção ao fundo que não chega. Fecho os olhos e o vento acaricia-me a fronte como duas mãos que me recebem, a queda é infinita. Se ao menos o cão em casa, atirava-lhe a bola umas quantas vezes até me fartar. Apresso-me a pegar num cd ao acaso e ponho-o a tocar. Não me apetece, não quero ouvir nada. Até a música é insuportável. As notas soam-me dissonantes são egodistónicas, hoje não dá mesmo. Sinto os pulmões cheios, tão cheios que me sufocam. Ligo o pc na esperança de algum e-mail animador, nada somente
precisa-se médico para as Caldas-da-Rainha, engenheiros para Angola, canalizadores todas as regiões do país bem remunerado
há uma mensagem do Carlos que quer partilhar comigo um vídeo do youtube
desculpa amigo hoje não estou com cabeça
apago-a e fecho todas as janelas rapidamente, a janela do meu quarto fechada à que tempos o meu quarto um cheiro a mofo incrível se a abro
- Miguel não atravesses a estrada que pode vir algum carro
num tom estridente e insuportável e também os carros com buzinas, de modo que prefiro o cheiro a mofo húmido e sufocante a criar bolor. Abro um novo documento no word. À minha frente uma página em branco, só um traço preto que vai marcando os segundos sem os contar, a rir-se para mim como quem diz
- Então, nada? Nem uma palavra?
e eu quieto calado parado mudo a ouvir o meu corpo imóvel a cortar o vento, sozinho à demasiado tempo sem ninguém a zelar
- Miguel cuidado com os carros
de maneira que eu atropelado a toda a hora, a sentir o vento na cara. Aborreço-me do branco e do preto que me judiam e fecho também esta janela. Apago o computador. Apago a luz. Apago tudo. Só não consigo apagar o som do ar, que persiste no escuro já depois de me ter escondido debaixo dos lençóis. Quero dormir e não posso os pulmões cheios a querem explodir pela boca e pelos olhos. A cama reclama do meu peso, tornei-me um homem pesado e este peso arrasta-me. Continuo a cair para baixo sem ter um par de mãos para me receber. A queda não acaba nunca a queda é infinita, vou caindo, caindo, caindo.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

MGMT - electric feel

Conheci-os à pouco tempo e tenho andado com isto no ouvido. Editaram um primeiro Ep em 2005 "time to pretend" música que abre também o primeiro álbum "oracular spetacular" (2008. o disco é muito bom, parece uma mistura incrível de rock pop funk com algum psicadelismo (como é possível constatar nos videos). enjoy

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Há dias em que lembro as tuas mãos a apertarem-me de encontro ao teu corpo no calor da tua segurança
sentia-me tão cansada
aconchegavas sem saberes as lágrimas que vertia por dentro, não percebo de onde vêm porque às vezes um sorriso, talvez das despedidas, sem dizer adeus com palavras,
- Adeus, até breve
somente nos olhos uma saudade futura
- até breve
até quando?
e a tua mão que me puxava cheia de certezas, a ignorar a minha mãe a emudecer um grito
- Adeus, até breve
que o estômago lhe enviava e ela lhe devolvia porque a minha mãe a engolir um grito ao ouvir aquela besta de ferro a apitar e a anunciar
- Adeus
eu um nó no estômago a calar-me, a tua mão a puxar-me para dentro do estômago da besta que ia engolindo outras pessoas, sem perceberes as lágrimas que não se vêem, tal como nunca percebeste quando eu abraçada aos meus joelhos, a dúvida de alguma vez tornar a vê-la
A pouco e pouco a terra a mover-se debaixo dos nossos pés sem que caminhássemos em direcção alguma, apenas o desconhecido como destino e ao fim de uns dias os dias todos iguais, as mesmas palavras os mesmos beijos, as tuas mãos a afogarem-me contra o teu corpo
os apitos da besta de ferro agora uma música aborrecida sempre com o mesmo tempo o mesmo compasso as mesmas notas repetidas, o estômago agora sem nós nem borboletas, vazio a protestar
- tenho fome
e eu vazia abraçada aos joelhos por não ter ninguém para abraçar a habituar-me às lágrimas que nunca percebeste e nunca aconchegaste, foram tão poucos os dias em que as tuas mãos me apertaram seguras e o comboio rasgava a paisagem sem interrupções, à janela a minha mãe a dizer coisas em silêncio, se calhar,
- Adeus até breve
às quais eu respondia com olhos brilhantes de saudade, a minha aldeia a encolher e depois a janela desfocada, a lembrar coisas que sinceramente preferia esquecer a respirar sozinha pela primeira vez enquanto embaciava o vidro e aconchegava no teu colo a minha mãe agora sozinha, o meu pai morto à que anos e os meus irmãos alguns que eu nem conheci na França à procura de melhor sorte a acenar em silêncio,
- Eu prometo que lhe escrevo mãezinha
assim como prometi a mim mesma que te escreveria e nunca escrevi, e eu a ver a aldeia encolher à medida que também a minha mãe encolhia e a tua mão me puxava
- Vou fazer de ti uma mulher feliz
a acreditar sem prometer nada de volta e tu a cobrares-me tal como ela
- Poque não dizes que me amas?
e eu a acreditar
- amo-te
sentia-me tão cansada
e a adormecer logo de seguida embalada pelo sono da viagem com a tua voz de fundo,
- vou fazer de ti uma mulher feliz
eu a querer acreditar mas indiferente à espera desesperada por uma estação onde pudesse
- vou comprar cigarros
e nunca mais tu ou a minha mãe e somente eu com as vossas lágrimas e à espera que outra besta qualquer me engolisse e me guardasse nas suas entranhas.
Há dias em que lembro aquele comboio em que fizémos uma viagem tão curta e desejo ter seguido viagem, mas sentia-me tão cansada.


Contextualização#06 ver www.luiselmau.blogspot.com

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Leituras (4)

"Peço desculpa a quem de direito por demorar dúzias de páginas a chegar ao final mas com tanta lembrança a ferver a cabeça escapa, oiço-a remexer episódios antigos a mudar pessoas e coisas de sítio e a repetir misérias que julgava esquecidas e afinal permanecem, o meu padrasto, a minha mãe, o doutor Sabino enquanto os tubos de borracha do estetoscópio sem repouso no tampo e continuarão sem repouso depois de me ir embora"

..."só Deus e eu neste limbo e qual de nós o mais incapaz de milagres, há anos que não gasto cera com Ele que nunca a gastou comigo"


in «O meu nome é Legião» António Lobo Antunes