quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Eu Bairro - sobre o verbo Bairrar

À margem da discussão sobre o acordo ortográfico, que nos deixa de papo cheio de consoantes mudas mas que em troca nos oferece três novas letras – que dão imenso jeito para palavras como welcome, yes ou look tão correntes no nosso quotidiano e tão lusitanas – venho propor a inclusão, no vocabulário da língua portuguesa, do verbo Bairrar.
Na (exaustiva) pesquisa que fiz, não foram muitas as referências à utilização deste verbo que encontrei – o que a torna, cientificamente, ainda mais relevante, inovadora e pertinente – parecendo-me todas as aplicações exactas (ups!será que devia ter suprimido o ”c”?) e esclarecedoras da mensagem que o interlocutor quis fazer passar. Desde o mais simples ou arrojado
- vamos sair à noite para o Bairro Alto
até ao mais grotesco e visceral
- vamos ao bairro apanhar uma daquelas à moda antiga
tudo isto poderia estar contido numa única palavra, Bairrar, e deste modo evitar alguns constrangimentos e explicações mais detalhadas que dispensamos dar ou ouvir quando estamos, por exemplo, num transporte público em que as conversas do lado nos distraem. Isto para não falar na poupança do latim, sim porque em tempos de “crise” até nas palavras se corta.
Certo é que, Bairrar não terá o mesmo significado para toda a gente – e nos tempos que correm a subjectividade é coisa a eliminar – mas acenderá um brilho nos olhos daqueles e daquelas que nesta palavra encontram a promessa de uma tarde/noite bem passada, na companhia de amigos, risos e conversa. Este verbo encerra em si o sentimento de cumplicidade e amizade entre aqueles que Bairram juntos.
Eu Bairro, às vezes menos do que eles Bairram, mas sempre feliz quando Bairramos!
E tu, Bairras?

#3 texto publicado em www.ilovebairroalto.com
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2011

«É o Bairro Alto de lá!»

Todos nós temos pontos de referência que nos ajudam a situar, num contexto diferente, face à nossa realidade. São portanto comuns as comparações com as coisas que conhecemos. Exemplos disso, são frequentes quando relatamos a alguém uma experiência ou um lugar num outro país. Quando vou viajar e procuro saber um pouco mais sobre o destino a que me dirijo estes episódios são recorrentes, sobretudo quando alguém procura aconselhar-me um sítio para ir sair à noite, beber um copo ou simplesmente para passear. A frase que mais oiço é
«É o Bairro Alto de lá!»
como se de uma instituição se tratasse
«- Aqui à direita é a Câmara Municipal, ali a Assembleia e mais à frente o Bairro Alto…»
Recentemente, aconteceu-me em Paris onde me apresentaram Montmartre, graças à sua localização num ponto mais alto da cidade, aos artistas e bares que aí se localizam, como sendo o Bairro Alto lá do sítio. Em Madrid, este seria o bairro de Chueca ou ainda a zona de Malassaña. Em Viena seria a Mariahilferstrasser e o Neubaugasse os mais semelhantes, devido aos restaurantes, bares e galerias de arte aí existentes. Apesar de ter gostado muito de todos os locais enumerados (e de perceber as comparações), não encontrei o Bairro Alto em nenhum destes sítios. E ainda bem! No mundo globalizado, da uniformização e da embalagem, é normal encontrarmos lojas, marcas e supermercados iguais em qualquer país e exclamarmos com uma surpresa saloia
«-Olha, isto também há lá!»
mas nunca me aconteceu dobrar uma esquina e encontrar o Bairro Alto. Felizmente este ainda não é “frenchisável” o que lhe permite manter-se único e diferente de tudo o resto, e conservar a sua identidade local, tanto das características geográficas como das gentes que lhe dão a sua vida própria. Assim, o Bairro Alto de lá não existe para além do Bairro Alto de cá, o nosso. E se o quiserem conhecer só poderá ser em Lisboa!

#2 texto publicado em www.ilovebairroalto.com
Lisboa, 27 de Dezembro de 2010

A primeira vez...

Na primeira vez que escrevo neste sítio, procuro a primeira vez que pisei as ruas deste bairro e assim regressar a uma experiência com mais de quinze anos. Claro que este exercício rapidamente se revela de grande inutilidade, pois não há facto que não surja misturado com outro. As presenças aparecem como imagens confundidas com as de outras pessoas. A história emerge sempre contaminada por anos de histórias de copos e cigarros, de amigos, de sítios que já fecharam, de cheiros, de encontros, de conversas apaixonadas, de tristezas, de risos, de emoções, de amores e desamores…
A primeira vez que fui ao Bairro Alto foi ontem, mas também foi há quinze anos.
Nunca sei qual é a Rua do Diário de Notícias nem a Travessa da Espera. Perco-me de cada vez que quero ir dar às Catacumbas ou ao Clandestino. Mas desfruto sempre daquelas ruas cheias de gente à noite, povoadas de vozes que se atropelam entre línguas e sotaques vindos de toda a parte e por onde deambulo sempre como da primeira vez. É como andar perdido sabendo exactamente para onde quero ir. Socorro-me da memória na esperança de pontos de referência que me guiem no meu caminho. Socorro-me da memória para constatar que já aqui tinha estado e, no entanto, tudo tão novo, tudo tão surpreendentemente novo. Socorro-me da memória para escrever este texto, mas entre o vivido e o fantasiado, esta surge contaminada constituindo-se assim num exercício da mais plena liberdade. Sem compromisso com os factos, a minha memória não retrata nem relata a história de uma primeira vez, mas antes cruza experiências de vezes sem conta, de primeiras vezes actualizadas e transformadas pelo tempo e por este espaço tão particular e com a capacidade daquilo que é novo. No Bairro Alto, todas as vezes são a primeira.

#1 texto publicado em www.ilovebairroalto.com
Lisboa, 17 de Novembro de 2010