sexta-feira, 14 de março de 2008

Na vida e na morte

Olho-o com saudade até ao infinito, saudade infinita, à espera sempre de te ver chegar a qualquer momento trazido numa qualquer corrente, eu acorrentada presa desde a tua partida. Andas perdido há que anos, eu por cá ando igual, tu que nunca te perdias e sabias sempre onde estavas e qual a direcção certa a tomar que todos os dias ainda ao longe me avistavas no cimo do monte e erguias já triunfoso o troféu do dia a acenares-me beijos que eu recebia de peito aberto e aliviado porque te via e sabia que estarias em casa dentro de pouco tempo, a visão de ti era a certeza de que o dia que tanto temia não houvera ainda chegado. Chegou. Eu à deriva em casa a falar aos móveis e eles num silêncio de ignorância com as batatas ao lume a prevenir um atraso que se alongava eternamente a morder o relógio e a engolir o tempo. Subo o monte donde sempre te avisto e somente cinzento tudo cinzento daquela cor que ameaça infinito cinzento socada pelas rajadas molhadas do vento um murro no estômago que não quero receber. Desço à praia atordoada pela irregularidade do caminho as pedras a pisarem-me toda o corpo a gelar por debaixo do xaile preto que me ofereceste no dia em que casámos ensopado ensopada o peso a aumentar o caminho turvo e incerto que continua na areia tudo cinzento a praia deserta sob um cinzento que ameaça o mundo deserto. Olho-o até ao infinito ajoelho-me perante o trovão que rebenta a meus pés pergunto-lhe por ti e responde-me numa voz de raiva, eu com tanta raiva com tanto ódio, a engolir-me o coração a esmagar-me a afogar-me os olhos. Chegou. O mundo deserto até hoje sem uma luz de ti eu perdida sem saber a que horas vens para almoçar. Subo o monte, em dias solarengos quase a impressão de te ver ao longe a acenares-me beijos as gaivotas em voo picado em direcção ao espelho azul casais de velhos trazem a merenda e olham o horizonte, esperarão eles alguém perdido há muitas rugas atrás? são simpáticos oferecem-me vinho e pasteis de bacalhau, embrulho um num guardanapo e guardo-o para ti no bolso do meu avental quando o céu se incendeia partem fico sozinha com os olhos a naufragarem-me o mundo deserto levanta-se um friozinho que me arrepia por dentro recolho-me e lembro-me das batatas ao lume deixo-as dentro da panela para não arrefecerem come quando chegares deves vir com fome se por acaso me encontrares a dormir acorda-me que eu faço-te companhia.


contextualizacao #08 ver www.luiselmau.blogspot.com

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