quarta-feira, 16 de julho de 2008

Profissão Errada

Conheci a S. numa típica noite de copos e nunca mais a vi. A noite estava boa eram dias quentes de um Inverno, gosto de quando o Inverno é quente, desocupado e sem dinheiro daí não sair há tanto tempo. Essa noite o jantar foi servido em casa e deglutido entre palavras saudosas de amigos que eram mastigadas a gosto em crescendo ensopadas num vinho tinto que alguém eloquentemente escolhera. A conversa estendeu-se algumas cervejas mais pelos bares do Bairro Alto e descemos até ao buraco. À chegada o vinho já me dançava – de outro modo nem uma palavra – e os cigarros seguiam-se uns aos outros entre os dedos numa nuvem de incêndio em que conheci S.
- Tens um cigarro?
e eu claro que tinha cigarros e fósforos e isqueiro, se ela preferisse, e muitas palavras para lhe dar, uma vez que tinha usado vinho para as empurrar ao jantar e as tinha prontas a sair cá para fora, e uma vontade incrível de lhe trincar os lábios que me preenchiam o olhar desfocado, ou parcialmente focado, e de lhe beijar os olhos negros onde me perdia em elipses que me traziam invariavelmente ao mesmo lugar àquela pista de acasalamento. E dançámos, ou melhor o meu vinho dançou com ela uma vez que eu não sei dançar, e ela aparentemente conhecia-me de um teatro onde eu não trabalhava e ela a insistir
- Não és assistente de produção no Teatro Nacional?
e eu a querer ser o que ela quisesse que eu fosse a anular-me e a querer apenas concordar e que ela concordasse em dar-me o número de telefone que era para lhe ligar mais tarde durante a semana quando o vinho tivesse ido embora e os meus olhos pudessem já focar a pele negra-dourada e o sorriso branco que lhe irrompia dos lábios que eu queria morder e a perfeição do movimento dançante do seu corpo e os músculos desenhados dos braços que eu queria à minha volta, mas apenas consegui dizer,
- Não. Vendo telemóveis
sem conseguir que ela me desse o seu número para falar com ela através da minha mão, e a ficar desesperançado com aquela conversa do trabalho e do teatro, eu que entrei num teatro uma ou duas vezes uma por ter feito confusão com a porta do metro outra para ver um tipo que conta piadas, gostei de ir teatro foi giro ri-me à brava com aquele actor que pelos vistos, e apesar de ser actriz, ela não conhecia. Às vezes impressiona-me a falta de cultura que alguns artistas têm como se só tivessem espaço para o seu próprio trabalho, e eu não conhecia o dela mas eu não sou artista, falou-me em duas peças que tinha feito recentemente o «não sei quê improviso» do Pirandello, decorei porque tem um nome fixe o que eu me ri Pirandello, que era basicamente o que eu estava a fazer há horas a improvisar e outra de um estrangeiro com um nome esquisito. Eu tentei dançar mas tropecei-lhe num pé e acordei na rua vazia a apanhar ar ao lado do vinho e do jantar.
Conheci-a nessa noite e nunca mais a vi. Bem falava para a mão mas do outro lado nunca S. ainda lhe tentei vender um dos meus telemóveis podia não ter um e ser essa a razão de não me dar o seu número, e eu faria uma atenção especial no preço por ser para ela, mas recusou. Procurei em cartazes de vários teatros da cidade mas S. não vinha nas primeiras páginas como o Humberto Graça, aquele actor que vi no teatro e faz rir. O Pirandello, que fartote, deve ter-se pirado porque o seu nome também não figurava em parte alguma se calhar piraram-se juntos. E eu acho que percebo que não te tenhas pirado comigo porque
- Não. Vendo telemóveis
e não assistente de produção como tu achavas e talvez te desse algum jeito mas se me tivesses dado o teu número eu agora podia chamar-te a dizer que deixei os telemóveis e trabalho na bilheteira e que te ofereço todos os bilhetes que queiras e podes trazer o Pirandello se quiseres porque eu quero estar contigo como tu és.
Todas as noites a procuro entre o público e o palco, mas nunca mais a vi.

8 comentários:

LuisElMau disse...

muito bom.

eu acho que a vi uns dias depois, passou por mim no buraco e ia com cara de quem procura alguma coisa.

amelinha disse...

espero que a encontres e a mordas toda :)

i scream disse...

sorte a tua elmau, pois eu nunca mais a vi :)

lol... pode ser que sim :)

la folie disse...

este texto está muito bom.

ah, e afinal aquela estória de que "passa", afinal passa mesmo :)

i scream disse...

la folie obrigado pelo comentário. ainda bem que passa...
vai passando.

Jolinhas disse...

tu....tu.....mereces um prémio!!

Hi8 disse...

Ela não era assim tão perfeita, por certo foi do vinho.
excelente texto

i scream disse...

fico à espera desse prémio :)

e certamente o vinho ajuda à perfeição ;)
obrigado!